"Os que viajam sem rumo
só conseguem o cansaço da jornada,
e jamais o avanço em sua caminkada.”
Abade Moisé
É, portanto, visando à pureza de coração que tudo devemos fazer e desejar. Por ela, é necessário que abracemos a solidão,
suportemos os jejuns, as vigílias, os trabalhos, a nudez; que nos
dediquemos à leitura e à prática das outras virtudes, tendo como
intuito, exclusivamente, conservar nosso coração invulnerável a
qualquer paixão, fazendo-o galgar todos esses degraus, até que
atinja a perfeição da caridade. E se, impedidos por alguma legítima e indispensável ocupação, não pudermos realizar nosso programa rotineiro, não nos deixemos, por amor a tais observâncias,
sucumbir à tristeza, à cólera ou à indignação, porquanto foi no
intuito de reduzir tais vícios que teríamos feito o que foi omitido.
Por isso, não é tão grande o lucro que nos adviria de um jejum
praticado, quanto o prejuízo que sofreríamos com um movimento de ira; nem tão notável o benefício obtido por uma leitura,
quanto o dano causado pelo desprezo a um irmão.
Convém, portanto, condicionarmos essas práticas secundárias, como jejuns, vigílias, retiros, meditações da Escritura, a nosso escopo primordial,
isto é, à pureza de coração, que outra coisa não é, senão a própria
caridade. É necessário, pois, não menosprezar, por causa de tais
virtudes secundárias, aquela virtude essencial, pela qual, se a mantivermos intacta e íntegra, nada nos poderá prejudicar, mesmo
que, por alguma necessidade, tenhamos que negligenciar um ou
outro exercício secundário. Uma observância minuciosa de nada
nos adiantaria, caso nos deixássemos distanciar de nosso escopo
primacial, razão de todos os nossos esforços.
Quando um artesão se empenha em obter os instrumentos necessários à sua profissão seria, porventura, tão somente
pelo desejo de mantê-los ociosos e sem uso? Ora, a simples posse desse instrumental não lhe traria nenhum proveito, pois é o
domínio de seu manuseio que o fará atingir a perfeição em sua
arte. Por isso, jejuns, vigílias, meditações sobre a Escritura, nudez, privação completa de recursos não constituem a perfeição,
mas são apenas os instrumentos para que possamos adquiri-la.
Uma vez que, embora não sejam o fim daquela disciplina, são os
meios através dos quais aquele poderá ser alcançado.
Seria, pois, absolutamente inútil que alguém multiplicasse tais exercícios, e neles fixasse a intenção de seu coração, como
se fossem o sumo bem, deixando de aplicar todos os seus esforços naquilo que realmente constitui nosso escopo e por causa do qual exercemos todas essas práticas. Possuiríamos, assim,
os instrumentos de nossa arte, mas ignoraríamos o seu fim, no
qual se encontra todo o benefício. Tudo quanto possa perturbar
a pureza ou a tranqüilidade de nossa alma deveria ser evitado
como pernicioso, mesmo que nos pareça de alguma utilidade.
Essa norma irá nos permitir escapar à dispersão provocada por
pensamentos extravagantes e atingir, de acordo com a direção
correta, o fim desejado.
São João Cassiano.
I CONFERÊNCIA DO ABADE
MOISÉSÉ: É preciso a tranquilidade do coração. p. 26-28.
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